Como a Rússia se conecta à Internet?

10/05/2022

Como a Rússia se conecta à Internet?

Escrito por Emile Aben – Coordenador de Investigação do RIPE NCC

Colaboradores: Romain Fontugne, Rene Wilhelm

Há muitas especulações sobre a desconexão da Rússia com a Internet, seja ou não por vontade própria.

Neste artigo analisaremos a conectividade da Internet russa com o resto da Internet e como a mesma evoluiu em torno à invasão russa na Ucrânia, bem como as punições referente à mesma.

A nível de rede, a Internet russa está muito interconectada e é muito resistente, e, nesse sentido, acreditamos que as punições não afetarão muito. Neste artigo, analisaremos mais de perto como é a Internet russa, o que mudou nas últimas semanas e alguns dos possíveis efeitos que podem recair sobre a Internet, além da Rússia.

É importante levar em conta que não analisaremos as questões relacionadas com a censura, porém recomendamos as excelentes ferramentas e relatórios que oferece o OONI (Observatório Aberto de Interferências na Red) sobre este assunto.

Quem conecta os usuários russos à Internet?

A Internet está formada por mais de 70.000 redes. Cada uma delas se conecta com o resto da Internet através de uma ou várias conexões com outras redes. Uma forma rápida de classificar estas redes seria: redes com usuários (“redes de globos oculares”), redes com servidores (“redes de conteúdo”); e redes que proporcionam conectividade entre redes (“redes de trânsito”). Na Figura 1, visualizamos a interconectividade das redes russas eyeball e de como elas se conectam a outras redes, tanto dentro como fora da Rússia. (Esclarecimento: quando nos referimos a “redes russas”, nos referimos às redes que possuem o código de país RU nos arquivos delegados dos RIR).

Figura 1: Interconexões entre as redes da Rússia (nós vermelhos) e outras redes dentro ou fora da Rússia. As redes fora da Rússia são nós azuis. As redes Tier 1 são nós verdes.

Este é o roteamento atual na medida em que é possível medi-lo.

A Figura 1 mostra a interconexão entre todas a redes da Rússia (nós vermelhos) e outras redes dentro ou fora da Rússia (estas últimas representadas como nós azuis). As redes Tier 1 (ver mais adiante) são adicionadas como nós verdes. O tamanho de um nó está determinado por sua importância no roteamento da Internet para os usuários finais, que é medido em função ao grau de dependência a este nó por parte dos usuários finais da Rússia para chegar ao resto da Internet (ou seja, em termos de centralidade de intermediação estimada por AS Hegemony). Quanto aos nós de tamanho menor, embora não os consideremos importantes para o tráfego dos usuários finais russos, os dados de nossa plataforma de coleta de dados do RIS indicam que estes existem.

O que a visualização mostra ou não mostra

É importante deixar claro que o objetivo principal desta visualização é mostrar as interconexões que existem entre as redes apresentadas. Quanto ao volume de tráfego que flui através destas interconexões, a única indicação disto na visualização é o tamanho dos nós, já que os nós com uma maior centralidade de intermediação estimada terão provavelmente um maior volume de tráfego. Não dispomos de dados sobre a capacidade destes links nem sobre as relações comerciais (ou seja, de trânsito/peering) entre as redes.

Por exemplo, o fato de que Rascom (AS20764) esteja conectado a muitas redes estrangeiras não quer dizer que dependa fundamentalmente destas redes, mas sim que, simplesmente mostram que as interconexões existem. Muitas das redes que vemos ao redor de Rascom estão registradas na Europa, provavelmente porque Rascom faz peering em muitos IXP na Europa e por isso são vistas estas relações de peering. Além disso, o fato de que Rascom pareça estar conectado a mais redes que não são russas, poderia ser decorrente de que temos melhor visibilidade em Rascom que em outras redes.

É importante destacar alguns outros pontos da Figura 1. Em primeiro lugar, os links individuais entre redes representam links na topologia da rede e poderiam, na camada física, consistir em múltiplas conexões físicas entre estas redes, potencialmente no mundo todo. Em segundo lugar, devemos levar em conta que não podemos visualizar as rotas alternativas que podem existir. Nesse sentido, BGP é um protocolo que oculta informação, e a única forma de ver qual é a primeira alternativa é que as rotas que são utilizadas atualmente já não sejam usadas. Deve-se considerar que é possível ter melhor visibilidade em algumas redes do que em outras.

Redes Tier 1

As chamadas redes “Tier 1” são uma parte fundamental da interconexão da Internet. Com o aplanamento da Internet, seu papel está de certo modo em declive (visto que, cada vez há mais interconexão que as evita). De toda forma, se a Internet tem algo que se pareça com o seu núcleo, seriam as redes Tier 1.

Como podemos visualizar na Figura 1, algumas destas redes possuem atualmente uma grande influência na conectividade à Internet para os usuários finais russos; especialmente AS1299 (Arelion, ou Telia) e AS3356 (Lumen, ou Level3). Quanto às punições, tanto Lumen como Cogent (AS174) declararam publicamente sobre a limitação dos serviços para a Rússia, como aparece documentado no artigo do blog de Kentik.

Se observarmos as alterações nas adjacências de rede entre estes três Tier 1 no período entre 1º de fevereiro e 19 de março, podemos observar o seguinte:

Alterações nas adjacências de rede entre as redes Tier 1 selecionadas no período entre 1º de fevereiro e 19 de março

RedeASNAdicionadaExcluída
ArelionAS1299613
LumenAS335627
CogentAS17408

Visto que os contratos de transporte costumam ser anuais, é muito provável que os contratos existentes não sejam renovados e que os efeitos da desconexão do serviço sejam visíveis em longo prazo.

Cogent (AS174)

Em função dos dados de roteamento obtidos, Cogent é uma das redes mencionadas que não adicionou nenhuma rede russa; já que não se encontra mais conectada a nenhuma das oito redes registradas na Rússia, em particular a Transtelecom (TTK, AS20485) e a MTT (Multiregional Transittelecom, AS49476).

Tentamos utilizar RIPE Atlas para ver se os pontos de interconexão entre Cogent e Rostelecom mudavam, segundo foi proposto por ASN Tryst, analisado em um Hackathon de RIPE NCC durante o evento de RIPE 71. Fazendo uma análise deste assunto, se bem podemos ver várias cidades nas quais estas redes se interconectam, não achamos provas que demonstrem que nenhum destes pontos importantes de interconexão tenha desaparecido entre o período de 1º de fevereiro e 17 de março.

Latência

O relatório Internet Health Report possui gráficos de latência baseados nos tracerout de RIPE Atlas. É possível observar algumas alterações ao comparar a latência antes e depois da invasão em várias redes russas. Por sua vez, antes da invasão (parte esquerda da Figura 2) este sinal era bastante plano, após a invasão vemos que aparece um padrão diurno. Não sabemos exatamente o que isso significa, mas este tipo de padrão costuma aparecer quando uma rede fica mais congestionada (como vimos no começo da pandemia COVID-19).

As principais redes russas, Rostelecom (AS12389) e Transtelecom (AS20485) mostram este padrão, como podemos visualizar na Figura 2:

Figura 2: Gráficos de latência do Relatório Internet Health Report para as redes russas

IXP (LINX)

Uma das ações mais visíveis foi a de London Internet Exchange, LINX.

Focamos no caso da MegaFon, uma das principais redes russas, já que aí temos uma indicação mais clara do que mudou lá. As Figuras 3 e 4 mostram o que mudou em 11 de março durante o dia. A análise que garante isso é a mesma que utilizamos para a análise das interrupções nos IXP nos últimos anos (ver nossas análises anteriores para AMS-IX, DE-CIX e LINX).

Resumindo, para ver o que acontecia no dia 11 de março, olhamos os tracejou periódicos no Atlas de RIPE do dia anterior (10 de março) que possuem as seguintes duas características:

Sempre atingem um objetivo (para que possamos ver se o escopo entre src/dst foi afetado) e, sempre “passam” pelo elemento de infraestrutura que desejamos estudar (por exemplo, o porto específico da MegaFon em LINX).

Devemos levar em conta que, devido à natureza do traceroute, este tipo de análise mostra apenas as rotas de entrada à MegaFon (AS31133).

Figura 3: Conectividade em termos dos IXP visíveis nas rotas que antes passavam exclusivamente pelo porto IXP da MegaFon em LINX no dia 11 de março.

Na figura 3, podemos observar como muda a conectividade em termos dos IXP visíveis nas rotas que antes passavam exclusivamente pelo porto LINX IXP da MegaFon. A linha azul (marcada como linx-lon1-port-mf) mostra o raconto de rotas que incluem o porto IXP de MegaFon em LINX. Como podemos visualizar nesta figura, por volta das 16:00 UTC do dia 11 de março, vemos uma diminuição significativa das rotas deste porto. Não está claro por qual razão não se reduziu a zero.

A linha laranja (marcada como linx-lon1-other) representa as rotas através de outros portos de LINX. Estes começam a ser visíveis mais ou menos no tempo em que diminuem as rotas através do porto MegaFon. Isso indica um deslocamento das rotas para outras redes também em LINX. Mais ou menos ao mesmo tempo vemos também outros dois IXP nestas rotas: AMS-IX (Amsterdã) e DE-CIX (Frankfurt). Como muitas redes contam com peerings redundantes em LINX, AMS-IX e DE-CIX, é de se esperar este tipo de deslocamentos.

Figura 4: Alterações de conectividade quanto às redes dos percursos em 11 de março.

Na Figura 4, podemos observar como muda a conectividade em relação às redes nas rotas que monitoramos. Os destinos destas rotas estão no Customer Cone da MegaFon, portanto é bem provável que sejam redes russas. O gráfico mostra apenas as redes com as alterações mais significativas. Neste caso, vemos uma alteração por volta das 16:00, apenas é visível AS31133 (MegaFon). Isso se deve ao conjunto específico de tracerout com o qual medimos esta análise. Depois desta hora, observamos que aproximadamente 25% das rotas permanecem com a MegaFon, enquanto que no restante das rotas começamos a ver outras redes que proporcionam trânsito na Rússia: AS3216 (Vimpelcom), AS12389 (Rostelecom), AS20485 (Transtelecom) e AS9002 (RETN). Isso demonstra a redundância da interconectividade: enquanto houver caminhos alternativos na Internet, a exclusão de uma só rede de trânsito provocará um redirecionamento.

Se observarmos a acessibilidade dos destinos no conjunto de tracerouts que analisamos, não observamos nenhuma alteração significativa, isso indica que a acessibilidade dos destinos não foi atingida, pelo menos para o conjunto de destinos analisados.

Efeitos além da Rússia

Embora não se observam alterações massivas na conectividade das redes, os efeitos de latência poderiam ser indicativos de um aumento do tráfego e/ou diminuição da capacidade disponível entre a Rússia e o resto do mundo. Isso fez com que nos perguntássemos: que efeitos teria a diminuição da largura da banda das redes russas (de trânsito) para outros países?

Portanto, analisamos quais países dependem das redes de trânsito russas. Estas redes, se tiverem redundância em sua rede, poderão mudar de rota. Porém, a supressão das redes de trânsito russas pode atingir a largura da banda disponível dentro e fora destes países, se o tráfego da Internet já não for possível através das principais redes russas. O outro efeito poderia ser no aspecto financeiro. Para a capacidade da Internet conforme o uso, afastar-se das redes russas suporiam menos rendimentos para elas e mais para as outras redes.

Embora não tenhamos realizado uma análise completa, um exame preliminar destes efeitos mostra uma grande dependência dos usuários do Casaquistão das redes russas Vimpelcom (AS3216) e MegaFon (AS31133), como mostramos na Figura 5 (do relatório Internet Health Report):

Figura 5: Tabela de dependências de rede para os AS do relatório Internet Health Report.

Esta dependência poderia explicar por que a principal rede eyeball Kazakh (AS9198, Kazakh Telecom) começou a mostrar padrões diurnos semelhantes aos das redes russas.

Figura 6: Alterações de latência para Kazakh Telecom (AS9198).

Conclusão

Neste artigo mostramos a estrutura de alto nível de interconexão das redes russas, bem como a forma em que se conecta à Internet. Mostramos exemplos de algumas alterações que ocorreram por causa da invasão, mesmo que o panorama geral indica que não mudou muito desde o começo da invasão russa à Ucrânia.

Ficaremos atentos ao panorama geral da situação, e como a nossa análise atual deixa ainda várias outras perguntas, nos animamos a utilizar nossas ferramentas abertas, bem como as de outros que mencionamos, como base para uma investigação mais profunda. Temos previsto pôr à disposição dos usuários algumas das ferramentas que utilizamos análises anteriores como protótipos de código aberto. Nos próximos dias, poderá encontrar mais informação sobre o assunto nos comentários.

Notas

O código para criação de gráficos como os da Figura 1(ou seja, a visão do BGP de como se interconectam as redes de um país) está disponível aqui:

https://github.com/InternetHealthReport/country-as-hegemony-viz

O código para buscar as alterações de adjacência AS está disponível aqui:

https://github.com/emileaben/as-neighbour-diff

Este artigo foi publicado originalmente em RIPE Labs

https://labs.ripe.net/author/emileaben/how-is-russia-connected-to-the-wider-internet/

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